Títulos como “Estados Unidos e China tornaram o coronovírus num jogo de futebol geopolítico” (Foreign Policy), “Pequim e outras capitais tentam tirar o máximo proveito geopolítico do coronavírus” (Japan Times) ou “China-Estados Unidos: a guerra fria do covid-19” (Le Monde) até podem passar despercebidos entre as notícias do número galopante de mortes em Itália e Espanha ou a contabilidade diária dos infetados e vítimas mortais em Portugal, mas revelam bem como o vírus identificado pela primeira vez no final do ano passado na cidade chinesa de Wuhan pode mudar o mundo, nomeadamente a relação entre os países ao ponto de Xi Jinping ter telefonado a Donald Trump para se “unirem para combater o vírus”, com o presidente americano a dizer depois que teve uma “boa conversa” com o homólogo chinês e que “a China passou por muita coisa e desenvolveu um forte conhecimento do vírus. Estamos a trabalhar juntos. Muito respeito”.
Luís Tomé, especialista em relações internacionais, não tem, aliás, dúvidas sobre a chegada de mudanças geopolíticas, só sobre a sua dimensão: “É quase certo que esta pandemia venha a ter profundas repercussões na ordem internacional, cuja amplitude dependerá de três fatores, em cada país/potência e região: 1) a extensão do número de vítimas do covid-19 e a duração da situação de crise; 2) a dimensão dos efeitos económicos e sociais; 3) a gestão da crise e a capacidade de reação e de resposta das lideranças das potências e organizações regionais e internacionais.”
E o diretor do departamento de Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Lisboa (UAL) não hesita em apontar um potencial ganhador: “Tendo em conta estes fatores, apesar da incerteza e da imprevisibilidade que caracterizam a situação atual, é clara a tendência para que o reordenamento geopolítico mundial seja favorável à China. Numa fase inicial, os passos falhados do regime chinês puseram em causa a posição e a imagem internacional da China e também o “papel dirigente” do Partido Comunista Chinês. Porém, com as vigorosas medidas que implementou, Pequim começou a controlar a epidemia, ao mesmo tempo que noutros países e regiões, com destaque para a Europa e, entretanto, os EUA, a pandemia alastrou, expondo a negligência e a impreparação dos respetivos sistemas e lideranças, de uma forma ainda mais grave e evidente do que na China. Como que em ‘efeito boomerang‘, a expansão global da pandemia, a par, sobretudo, da incapacidade e da falta de solidariedade entre países europeus e dos erros sucessivos e persistentes da administração Trump e das autoridades americanas, passou a ser rápida e habilmente aproveitada por Pequim para posicionar a China como referência e líder global na resposta à pandemia: promove o seu próprio sistema, “lições apreendidas” e medidas; fornece ajuda e assistência material a muitos outros países – ajudando até outros Estados a organizar os seus sistemas de resposta – da Ásia-Pacífico ao Médio Oriente, África e América Latina, com destaque para a Europa perante a paralisia da UE e a incapacidade e a falta de solidariedade de outros Estados europeus; e retomou a produção em larga escala e a exportação para todo o globo de bens cruciais ao combate ao covid-19 como ventiladores e materiais de proteção”.
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